A Bain Company, uma das maiores firmas de consultoria do mundo, com 63 escritórios localizados em 38 países, se vê em meio a problemas por sua atuação na África do Sul, que começam a repercutir em um dos seus mais importantes mercados, o Reino Unido.
O ponto de partida para o caso foram os meios utilizados pela consultoria para estabelecer contatos com a Receita Federal da África do Sul (Sars) e, depois, o envolvimento da consultoria no que a Comissão Zondo, criada pelo judiciário para investigar a corrupção e a captura do estado sob o ex-presidente do país, Jacob Zuma, chamou de conluio entre a Bain e Zuma para redesenhar setores da economia local.
Segundo reportagem do jornal britânico The Guardian, a comissão aponta que entre 2012 e 2015 a Bain ajudou a desenhar planos para “capturar e reestruturar” o Sars, centralizando os procedimentos de compras, o que, na avaliação da comissão, facilitaria a corrupção no órgão.
Para abrir portas, a Bain contratou dois artistas, para os quais pagava 3,6 milhões de rands (170 mil libras, o equivalente a R$ 1,250 milhão) em troca de uma suposta consultoria estratégica nas áreas de compras e na “introdução” da empresa junto a líderes políticos. Segundo o que apurou a comissão, a Ambro-Bright, companhia de propriedade do produtor de cinema Duma Ka-Ndlovu e do músico Mandla KaNozulu, recebeu valores altíssimos pelos serviços, em patamares destinados apenas a ex-CEO’s ou ex-oficiais públicos quando contratados para oferecer conselhos.
A reportagem do Guardian diz que e-mails em poder da comissão mostram que o acordo gerou preocupações em outros escritórios da consultoria. O diretor financeiro da Bain em Londres, Geoff Smout, levantou preocupações de que o relacionamento (com os dois artistas) “parece muito duvidoso”. Sócia e Head de Marketing na matriz da Bain, em Massachussets, Estados Unidos, Wendy Miller disse que o acordo poderia não passar num teste sob os holofotes caso se tornasse conhecido publicamente.
Em 2014, a Bain se beneficiou da extensão de um contrato original de seis semanas para outro, de 164 milhões de rands (8 milhões de libras, ou R$ 59 milhões) para assessorar a Sars por 27 meses, respondendo a um documento de licitação que a própria empresa ajudou a redigir, segundo o relatório. E-mails internos da consultoria em posse da comissão levaram os seus membros a crer que a Bain sabia que não tinha experiência para realizar o trabalho, mas seguiu em frente mesmo assim. A comissão destaca também que nas tratativas de sua proposta, a Bain aconselhava a “identificar indivíduos para neutralizar” dentro da Sars. Já a Bain diz que isso não significava que os oponentes aos planos para o serviço de receita deveriam enfrentar qualquer tipo de punição, mas que deveriam ser persuadidos a serem “neutros” em relação às propostas.
A comissão se baseou, em parte, nas evidências apresentadas por um ex-funcionário da Bain, Athol Williams, que foi contratado pela Bain para investigar o que havia acontecido. Mas, Williams renunciou ao posto, porque, segundo disse à comissão e a veículos de imprensa, sentiu que a empresa não estava sendo transparente com ele, tendo inclusive feito inúmeras tentativas de lhe oferecer “grandes somas de dinheiro em troca de seu silêncio”.
A consultoria rebate essa acusação e aproveita para dizer que o relatório se baseia fortemente no relato de um indivíduo que, segundo a empresa, admitiu não ter “nenhum conhecimento em primeira mão” do trabalho de Bain na SARS durante seus depoimentos. E, que a comissão não considerou fatos novos no seu trabalho. “O indivíduo não era funcionário da Bain na época do trabalho da SARS, que decorreu de 2015 a 2017. Ele voltou à empresa em 2019, após ter saído em 2010. Apresentamos dois depoimentos detalhados à Comissão Zondo, nenhum dos quais parece ter sido incluído no relatório”, disse a empresa em comunicado em janeiro deste ano.
Ainda de acordo com a Bain, o escritório de advocacia Baker McKenzie (uma rede global que no Brasil opera em parceria com o Trench, Rossi e Watanabe Advogados) realizou uma investigação completa a pedido da empresa e que não teria sido limitada de forma alguma. “Sua investigação foi extensa e incluiu uma revisão de mais de 250 mil documentos, bem como 83 entrevistas realizadas com 58 indivíduos, incluindo ex-funcionários. A investigação não descobriu nenhuma evidência de que prejudicamos intencionalmente a SARS nem de que participamos da captura do estado. Isso foi tornado público em um comunicado emitido em 17 de dezembro de 2018”, reforça o comunicado da empresa de consultoria.
Peter Hain, importante membro da Câmara dos Lordes britânica, instou o primeiro-ministro britânico Boris Johnson a congelar imediatamente todos os contratos do governo com a Bain e a aconselhar todos os órgãos públicos a fazer o mesmo. Em carta compartilhada com o jornal, Hain, ex-ministro do Trabalho e líder antiapartheid que viveu parte da infância na África do Sul segregada, escreveu que o país “teve sua capacidade de cobrança e aplicação de impostos maciça e sistematicamente danificada durante o governo (de Jacob) Zuma, tornando-a ineficaz na aplicação da conformidade fiscal”. “É ultrajante que uma empresa multinacional como a Bain aja como cúmplice disposta e consciente da corrupção por aqueles que pretendem minar o Estado sul-africano e sua democracia. Portanto, considero completamente inaceitável que a Bain esteja licenciada para operar comercialmente no Reino Unido e seja endossada pelo seu governo por meio de contratos de trabalho com departamentos governamentais e órgãos do setor público”, reforçou.
A Bain mantém ou manteve contratos de vários milhões de libras (alguns de dezenas de milhões) por serviços de consultoria ao Gabinete, inclusive em relação ao Brexit além de operar com o NHS (o serviço nacional de saúde), o ministério da Defesa entre outros.
Hain disse que a medida deve ser tomada a menos que a Bain coopere totalmente com os promotores e investigadores sul-africanos, que estão investigando suposta corrupção sob o ex-presidente Jacob Zuma.
“Aceitamos que, por meio de vários lapsos de liderança e governança, a Bain África do Sul se tornou um participante involuntário de um processo que infligiu sérios danos à Sars, pelo qual pedimos desculpas”, diz o comunicado da Bain, no qual também se lê que a consultoria segue confiantes de que não apoiou de forma voluntária ou consciente a captura do estado.
“O envolvimento da Bain África do Sul com a SARS foi um episódio humilhante. Lamentamos profundamente qualquer papel que nosso trabalho possa ter desempenhado inadvertidamente no que aconteceu na SARS. Desde então, tomamos medidas abrangentes para garantir que não repitamos nossos erros do passado. Em novembro de 2018, reembolsamos, com juros, todos os valores que recebemos por nosso envolvimento com a SARS. Nomeamos uma nova liderança sênior para nossos negócios sul-africanos e estabelecemos um conselho de supervisão para nossos negócios no continente. Também montamos uma equipe global de gerenciamento de risco para supervisionar todo o trabalho com o setor público”.
Em outra frente, a Public Interest SA, um grupo da sociedade civil sul-africana, diz que apresentou uma queixa contra a Bain ao Departamento de Justiça dos EUA. “Os dias de cruzar as mãos e esperar que o NPA (Autoridade Nacional do Ministério Público) efetivamente perseguirá processos contra multinacionais corruptas acabaram”, disse o fundador e presidente da Public Interest SA, Tebogo Khaas, em um comunicado.
O ex-presidente Zuma negou irregularidades e se recusou a cooperar com o inquérito, levando à sua prisão em julho do ano passado por desacato ao tribunal. Pelo ato, ele foi condenado a 15 meses de prisão, tendo deixado a cadeia por problemas de saúde em setembro e retornado em dezembro, após a avaliação de uma junta médica.
Imagem: Undraw