O especialista Matteson Ellis fala sobre a evolução dos enforcements de FCPA na América Latina e do desenvolvimento na aplicação do memorando Yates pelo governo norte-americano.
Não é exagero dizer que o advogado norte-americano Matterson Ellis é uma das grandes “estrelas” do mundo do compliance no continente americano. Carismático e com pleno domínio do palco, Matt é editor do FCPA Américas, um dos primeiros blogs especializados no tema, e um dos advogados norte-americanos com maior atuação em casos de compliance na América Latina. Durante sua passagem pelo Brasil, onde se apresentou no 6º Congresso Internacional de Compliance, o especialista conversou com exclusividade com a reportagem da revista LEC.
Você falou sobre o fato de o governo dos Estados Unidos estar mais inclinado a encerrar investigações relacionadas ao FCPA (a lei de combate à corrupção estrangeira norte-americana) por meio dos acordos nos quais declina de investigar as empresas, os processos de declination. Como funcionam esses acordos?
Os acordos chamados de declination não envolvem nenhum tipo de pagamento de multa, ressarcimentos ou assumpção pública de culpa pela empresa. Eles significam que o governo norte-americano, por um ou mais motivos, abre mão de seguir com um caso contra uma empresa. É um documento que é dado pelo governo à empresa dizendo que ela não está mais sendo investigada. Da perspectiva da companhia, esse é o melhor modo para encerrar uma investigação relacionada ao FCPA sem nenhuma consequência negativa para a companhia, como multas ou outras penalidades.
Qual o critério adotado pelo governo para se definir por declinar do caso, ao invés de seguir com as investigações, por exemplo?
Para obter um declination, em geral, é preciso cumprir com alguns passos anteriores. Primeiro, a empresa precisa comunicar voluntariamente, ou seja, antes de as autoridades descobrirem, o que foi descoberto. É preciso realizar as devidas investigações e cooperar com a investigação do governo, responder aos questionamentos e requerimentos específicos demandados por eles. Depois, a empresa tem de mostrar como remediou o caso e apresentar o que descobriu em termos de falhas de controles internos e brechas de compliance. Por fim, o Departamento de Justiça (DoJ) vai querer saber o que a empresa aprendeu com as investigações e quais medidas foram tomadas para corrigir os problemas que permitiram que a propina fosse paga. Se a companhia fizer isso, ela pode ir ao DoJ, e também a SEC (que regula o mercado de capitais nos Estados Unidos) e se qualificar para pedir as autoridades que declinem do caso e que não sejam alvos de investigações e penalidades.
O Memorando Yates, orientação recente pela qual o DoJ busca punir também as pessoas envolvidas nos malfeitos, já está funcionando de fato?
Nós temos visto com estatísticas de que o número de ações contra indivíduos impetradas pelo DoJ vem subindo. Como operador de compliance, lhe digo que já é possível sentir o efeito do Memorando Yates. Se você está numa investigação de FCPA e vai fazer a comunicação às autoridades norte-americanas, uma das primeiras coisas que eles vão lhe perguntar é: “Quem foi o responsável?”. Tenha certeza de que o seu escopo de investigação permita identificar responsabilidades individuais. Porque, o governo dos Estados Unidos está perseguindo indivíduos. Com isso, o governo quer reforçar junto às pessoas, que elas pensem duas vezes antes de praticar corrupção. Que elas pensem em suas liberdades individuais e não só nas penalidades contra a empresa. Os efeitos do memorando serão melhores percebidos nos próximos anos, já que são investigações que costumam durar anos. Mas ele é real, tem sido abraçado pela nova administração e está sendo posto em prática.
Vindo para a América Latina, ainda lidamos no Brasil com ao menos quatro autoridades que não se coordenam em relação aos acordos de leniência. Isso pode acontecer em outros países da região?
Essa é uma boa questão e lhe diria que ainda é muito cedo para sabermos. A razão para lhe dizer isso é que o Brasil é muito mais avançado em termos de casos e negociações de acordos de leniências. Na Colômbia, por exemplo, agora existe um mecanismo que permite às empresas cooperarem em casos de corrupção e terem suas penas reduzidas por essa cooperação. Mas, as empresas ainda não estão cooperando, porque o sistema ainda não está bem estabelecido. Não estamos num ponto onde é possível enxergar com clareza se essas jurisdições vão enfrentar desafios nesse particular. Acredito que na Colômbia e no Chile – e digo isso sem ser um advogado chileno ou colombiano –, por exemplo, as autoridades responsáveis por tocar os casos de corrupção empresarial estão bem definidas e limitadas a uma autoridade. Acredito que nesses países, empresas em busca de um acordo não devem enfrentar as mesmas dificuldades de lidar com várias agências (sem coordenação por parte delas), como acontece no Brasil.
Você diz que mais de metade das investigações sobre supostas violações ao FCPA envolvem a América Latina, de acordo com informações já tornadas públicas. Esse número é reflexo de alguns grandes casos, como o que os Estados Unidos têm construído em relação à estatal venezuelana PDVSA e à própria Lava Jato? Ou trata-se de um olhar mais incisivo das autoridades sobre a região?
Dependendo das estatísticas que você considera, existem diferentes fatores que justificam esses números. De acordo com dados e informações já tornadas públicas, desde 2010, 17 empresas latino-americanas abriram investigações por violações ao FCPA. Dez dessas empresas são do Brasil, e isso sim, muito em função da Lava Jato. Em 2017, dos enforcements que nós sabemos que foram abertos, mais da metade delas envolvem investigações na América Latina, seja de empresas locais ou de subsidiárias de empresas multinacionais na região. Acredito que esse número também esteja muito relacionado com a Lava Jato (e seus desdobramentos na região). Já em relação à PDVSA, os casos estão mais direcionados contra indivíduos e não contra empresas, por isso, esse caso não influencia tanto os números de investigações corporativas. Outra estatística interessante é que em 2017, mais de metade dos casos concluídos envolveram problemas na América Latina. Esse número já não tem tanto a ver com a Lava Jato, porque ainda existem muitas investigações relacionadas à operação em andamento. Ele reflete mais casos fechados no México, onde a abertura econômica de setores como energia e infraestrutura em anos recentes, atraiu um grande volume de investimentos de empresas americanas, que atuaram muito naquele mercado, levando a um aumento de riscos e da cooperação entre as autoridades mexicanas e norte-americanas. Chile e Argentina também tiveram alguns casos concluídos recentemente.
A China deixou de ser um foco de problemas com o FCPA?
Companhias chinesas, em geral, não são listadas nos Estados Unidos. Mas, de todos os países, a China é o que tem gerado a maior parte dos enforcements de FCPA. Uma das razões é o alto risco de corrupção do país. O Estado e as estatais são tão preponderantes na economia chinesa, que praticamente todo mundo que faz negócios por lá acabe vendendo alguma coisa para o governo. São tantos pontos de contato com o setor público que o risco aumenta muito.
É possível que numa guerra comercial (e, aparentemente, estamos no início de uma) o FCPA seja usado como uma arma dos Estados Unidos contra seus “inimigos”?
Essa é uma boa questão. Você certamente pode imaginar num cenário de guerra comercial, de quais armas os Estados Unidos poderiam se valer para fazer seus rivais pagarem. Mas, na prática, trabalhando todos os dias com os procuradores responsáveis pelos enforcements de FCPA, e os conhecendo, a verdade é que eles estão isolados da política num nível alto. Você pode ver que, mesmo com mudanças de administração, existe consistência em relação às prioridades do FCPA. Acho que a possibilidade de influência por conta de questões de comércio é muito improvável.
Matt Ellis is member at Miller & Chevalier law firm, focusing on international anti-corruption enforcement and compliance.
Publicado originariamente na Revista LEC, edição nº 22, com o título: Mudanças em andamento.
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