Com o aumento do escrutínio da sociedade e uma mudança cultural no processo de gestão de entidades públicas e associações privadas, como o Compliance pode contribuir para a sustentabilidade dessas instituições?
Desde antes da posse do atual governo, no final de 2018, que o Ministro da Economia, Paulo Guedes, vem travando uma batalha com instituições como as Confederações Nacional da Indústria e do Comércio (CNI e CNC, respectivamente) e o SEBRAE, o Serviço Brasileiro de Apoio ao Micro e Pequeno Empreendedor. O motivo? O controle sobre um orçamento que, em 2019, foi de R$ 16,5 bilhões. Este é o montante que, segundo a Receita Federal, foi repassado às instituições do chamado Sistema S, um conjunto de entidades de caráter social, ligadas à indústria e ao comércio.
Todas as entidades atuam em serviços considerados de interesse público, como educação, assistência social e promoção da cultura. E todas elas – embora sejam entidades de direito privado, controladas e administradas por federações e confederações patronais da Indústria e do Comércio –, são mantidas por contribuições estipuladas em lei e administram recursos públicos. Compõem esse sistema nomes conhecidos de todos os brasileiros, como Sesc, Sesi, Senai e Senac.
Sem dinheiro em caixa, o ministro tem buscado, de diferentes formas, assumir o controle de parte desse orçamento para viabilizar projetos de interesse do governo. Exemplo recente foi a assinatura da medida provisória 932/2020. Por meio dela, o governo aplicou um corte de 50% nas contribuições recolhidas pelas empresas no período entre abril e junho. Se de um lado isso deu algum fôlego às empresas (de mais de R$ 2 bilhões, segundo o governo), atingiu em cheio ao orçamento dessas entidades que atendem a cerca de quatro milhões de brasileiros em seus cursos de educação profissionalizantes e outros tantos em atividades culturais e serviços. Por esse poderio, há sempre o risco destas entidades serem utilizadas para a promoção política dos seus mandatários ou dos grupos que as controlam nos estados, o que sempre abre espaço para acusações de desvios e mau uso do dinheiro público pelo grupo que não está no comando das entidades, mas que gostaria de ter.
Também são alvos para a prática de desvios de recursos por meio de fraudes e corrupção, como as investigadas pela operação e$quema, deflagrada em setembro deste ano e que apura o desvio, segundo o Ministério Público, de pelo menos R$ 151 milhões perpetrados por escritórios de advocacia que prestavam serviço às entidades do Sistema S fluminense, composto por Sesc, Senac e Fecomércio.
Nesse cenário, era de se esperar que o Compliance e a melhoria nos processos de Controle Interno ganhassem mais destaque nas entidades de direito privado, constituídas como serviço social autônomo e destinatárias de contribuições – como é o caso do Sistema.
Para essas entidades, em agosto de 2019, passou a valer o Decreto 9.781/19, que estipula o cumprimento das mesmas regras de transparência impostas ao setor público pela Lei de Acesso à Informação. O Sistema S sofre auditoria do TCU e já fornecia informações sobre as suas contas. Com o Decreto, essa publicidade foi ampliada para atender o interesse coletivo. No caso do Sesi, especificamente, de forma voluntária, a instituição aprovou a obrigatoriedade de programas de Compliance a partir de julho de 2020.
“Para essas entidades, a existência de um Compliance robusto, voltado à divulgação de informações de utilidade pública, ao reforço do objetivo social das instituições e da gestão ética, permite o controle público dos recursos utilizados e, consequentemente, aumenta a credibilidade de seus programas. Além disso, com essas medidas, as entidades do Sistema S podem ampliar a aplicação de controles nas suas instituições membro, alavancando uma gestão mais ética e transparente em áreas ainda carentes desse estimulo, como os setores rural, de comércio, de cooperativas, e nas micro e pequenas empresas”, afirma Fernanda Barroso Carneiro, diretora para o Brasil da Kroll, consultoria global nas áreas de Investigação de Fraudes, Riscos e Compliance.
Sentindo na carne
Muitas instituições estão passando por um grande processo de transformação relacionado, principalmente, com a redução de contribuições (e de incentivos) e com a sistematização e integração de áreas corporativas. Nesse processo, deixam de existir núcleos para cada uma das casas em seus respectivos estados de atuação e passa a haver um só sistema de gestão corporativo ou Programa de Compliance para todas elas, como o aplicável às casas do Serviços Nacional de Aprendizagem – SESI, SENAI e IEL. É interessante observar que o Programa de Compliance auxilia na transformação cultural interna e profissionaliza o papel destas entidades, que passa a ser mais institucionalizado e menos político ou subjetivo.
As instituições do Sistema S, por exemplo, possuem características peculiares: uma natureza privada, com obrigações de natureza pública.
Os programas dessas entidades possuem algumas características que os diferem daqueles instituídos em companhias privadas. São pontos que merecem destaque, como o alinhamento de auditorias obrigatórias, tais como a dos tribunais de contas, corregedorias e até auditorias externas à estratégia de implantação do Programa; a utilização de suas estruturas internas de pesquisa, tecnologia e conhecimento para educação e sensibilização de seus funcionários; e dimensionamento e utilização, por exemplo, das obrigações decorrentes da lei da transparência para formatar e especificar, com critérios claros e objetivos, as diferenças entre canais de denúncias, ouvidorias ou ainda SACs já instituídos.
Como explica o gerente de Auditoria Interna do Sebrae–BA, Henrique White, para complementar a transparência e acesso às informações por parte da sociedade em geral, a entidade tem intensificado as auditorias e monitoramento do portal de transparência do Sebrae, sempre com o objetivo de atualizar as informações diariamente, disponibilizando seu acesso a toda a sociedade. “Além do portal em respeito à LAI (Lei de acesso à informação), também temos um canal de ouvidoria e denúncias bem efetivo. Este canal possui um sistema único nacional onde a sociedade a qualquer momento pode registrar uma demanda com número de protocolo e prazo para resposta”, diz. Diferentemente de outras instituições do sistema S, o Sebrae não recebe contribuições de forma direta. O orçamento para os projetos da entidade é obtido junto às confederações.
O Sebrae-BA conta com um programa de treinamento anual com todas as unidades e, por isso, o grau de maturidade quanto ao tema Compliance já se encontra bem disseminado. “O grande desafio que vejo para estas unidades hoje, é quanto à disseminação junto aos seus fornecedores, principalmente neste cenário atual. Diariamente, recebo ligações ou realizo videoconferências das mais variadas unidades requisitando ajuda neste processo, percebo uma grande preocupação do nosso time”, afirma o executivo da instituição.
Os pilares do Programa de Compliance são sempre construídos segundo cada instituição, seu setor, seus riscos, sua cultura e seu estágio de maturidade em relação ao comprometimento com a cultura ética e integra. Entretanto, quando se trata de programas em entidades de caráter público, por sua própria natureza, se fala em obrigações legais decorrentes de princípios valores e regras constitucionalmente estabelecidas: princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, proporcionalidade e eficiência. Enquanto uma entidade privada age por interesse particular e faz somente o que a lei não proíbe, uma entidade pública existe para a proteção e atendimento de um interesse coletivo e somente pode fazer isso com fundamento em lei, ou seja, ela age somente por meio de lei ou ato administrativo que a autorize a agir.
Os pilares de cada um destes programas possuem fundamentos distintos. Por exemplo, o canal de denúncias de uma instituição pública está totalmente pautado no dever de prestação de contas da entidade, que deve informar todo e qualquer ato, todo gasto ou recurso, toda reunião, todos seus contratados etc., em razão da lei da transparência. Da mesma forma, suas regras e sistemas de controle decorrem da lei: corregedorias, tribunais de contas, auditorias internas e controle social são, de per si, parte da estrutura pública de qualquer entidade ou instituição. Seus processos de investigação, do sistema de dever legal de ação do servidor público que, somente pode agir no exercício de sua função para Servir ao Público.
Em essência, assim, enquanto em um Programa de Compliance privado os valores são definidos pelo Conselho de Administração, no público eles já estão previamente definidos no próprio ato de criação de tal entidade, sempre e inequivocamente, tendo como base, o interesse coletivo, a legalidade e a moralidade.
Entraves
Na visão de Fernanda, da Kroll, o maior desafio que essas entidades enfrentam no que diz respeito à pauta da conformidade é sempre o engajamento dos gestores para assuntos que, em uma visão mais simplista, iriam além do dia a dia do negócio, como o bem público, a integridade, a transparência e o objetivo social da empresa. Na prática, um Programa de Compliance vai além da criação de uma equipe própria e da definição de controles, exigindo sim uma dedicação de todos os executivos na reavaliação constante de riscos, no treinamento de colaboradores, na análise de fornecedores, no monitoramento de atividades e, por vezes, em investigações internas e auditorias. “Um ponto positivo que venho observando é que a busca por maior diversidade em Conselhos de Administração e na gestão das empresas vem contribuindo para aumentar o comprometimento da alta administração com o tema”, conclui.
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Publicado originalmente na edição 30 da revista LEC com o título “Setor em transformação”.
Imagem: Freepik