Depois de 88 anos e 20 edições realizadas do torneio de futebol mais importante do planeta, finalmente chegou o momento da tecnologia entrar de vez em campo na Copa do Mundo.
Vale lembrar que em 2014 já houve a utilização da tecnologia da linha do gol (TLG) na competição realizada no Brasil. Esta tecnologia consistia em câmeras de alta velocidade instaladas nas traves dos estádios sede que detectavam o momento em que a bola cruzava a linha do gol, transmitindo, quase que instantaneamente, um sinal visual e uma vibração ao relógio do árbitro da partida.
Nessa edição do Mundial, com a presença de inovações tecnológicas, restou demonstrado que atualmente não há mais espaço para aqueles que não estão em compliance, nem mesmo no futebol: situações de violação às regras e normas estabelecidas, por mais sutis e inocentes que pareçam, a famosa “malandragem” do esporte ou o “jeitinho” do jogador e, até mesmo, os casos de assédio e preconceito contra jogadores, jornalistas e torcedores não são mais ignoradas, em virtude da transparência que a tecnologia propicia.
Na busca por um futebol mais justo, com menos erros de arbitragem e com decisões mais assertivas para todos, a Copa do Mundo da Rússia 2018 admitiu o uso de duas novas tecnologias durante a competição. Trata-se do sistema conhecido como video assistant referee (VAR), livremente traduzido como arbitragem assistente de vídeo (“árbitro de vídeo”), e a utilização de um chip inserido dentro das bolas usadas no torneio, que monitoram em tempo real a movimentação e velocidade da bola durante as partidas.
O assistente de árbitro de vídeo ganhou notoriedade logo nas primeiras partidas disputadas na Rússia, em um jogo entre Austrália x França, ainda pela fase de grupos. Com o objetivo de auxiliar o juiz de linha na revisão de jogadas e tomada de decisões, o VAR, formado por uma equipe de árbitros, fica estabelecido fisicamente em uma central de transmissão fora dos estádios. Através da recepção das imagens gravadas pelas câmeras instaladas nos estádios, se faz possível ver e rever todos os lances por diferentes ângulos. Tendo em vista essa facilidade oferecida pela tecnologia, o árbitro de vídeo informa o juiz em campo, por meio de um comunicador de longa distância, sobre determinado lance. Nos casos de maior necessidade interpretativa, foi instalado na beirada do campo um monitor em que o árbitro da partida pode rever a jogada recém realizada, para que então seja concretizado o seu posicionamento.
É curioso observar a polêmica em torno da suposta falta de emoção que o uso do VAR poderia acarretar ao esporte. Por outro viés, também parece injusto impor ao Juiz em campo o uso apenas de um apito analógico, enquanto todos no estádio têm em mãos smartphones e tablets conectados à Internet.
O VAR pode ser a novidade no futebol, mas em outras modalidades esportivas, como basquete, futebol americano, baseball, tênis e vôlei, a tecnologia já é usada de maneira similar há algum tempo, sendo obviamente adaptada para cada regramento. Podemos perceber, através do aumento do número de esportes adeptos ao uso das ferramentas tecnológicas que visam garantir disputas justas, que estamos cada vez mais inclinados a “jogar limpo”, conforme as regras e de forma ética. O uso de tais ferramentas, tendem, de maneira geral, a nos trazer maior conforto e segurança nas tomadas de decisões justamente em razão da transparência que garantem.
Outro flagrante exemplo dessa inclinação pelo “jogar limpo” e “agir em conformidade”, também relacionado ao Mundial, é visto com a repercussão às situações que deveriam e poderiam ser evitadas, como os casos de assédio, racismo e homofobia.
Há alguns anos atrás gritos que ecoavam nos estádios como “macaco”, “homem-bomba” ou “puto” durante os jogos de futebol ou os vídeos postados e pulverizados nas redes sociais de cunho pejorativo contra mulheres eram tolerados como manifestações culturais e naturais de “rivalidade” ou “brincadeira”, algo que seria normal no mundo futebolístico.
Mas nessa Copa do Mundo foi diferente, uma vez que atitudes similares foram vastamente repudiadas pela sociedade e, em alguns casos, os autores receberam exemplares punições. Tais condutas não são exatamente uma novidade, mas então o que mudou no Brasil e no mundo?
Estamos vivendo uma clara mudança de cultura.
A normalidade com que as pessoas tratavam antigamente essas atitudes não é mais a mesma. A busca pelo o que é correto e ético, tanto na área profissional como pessoal, inclusive no esporte, passou a ser um pressuposto irrenunciável, tornando-se um dos pilares para formação de uma sociedade mais justa.
Compliance começou a ocupar um papel fundamental na vida de cada vez mais pessoas. A tecnologia teve grande participação nessa mudança, muito em razão das mídias sociais, que deram voz a quem não tinha. Casos de assédio e discriminação que antes seriam considerados como situações normais passaram a ser intensamente expostas e debatidas nas mídias sociais e, como consequência, trouxeram à tona uma grande discussão sobre o que é ético e o que é abusivo.
Algumas condutas simplesmente não serão mais aceitas nesse mundo moderno!
A grande diferença é que antes silenciadas, essas vozes clamando por direitos básicos passaram a ser ouvidas e o nível de tolerância ao preconceito e a discriminação diminuiu. Campanhas no Twitter, com hashtags que repercutiram no mundo inteiro, são uma demonstração da insatisfação das pessoas com os episódios de abuso e desrespeito.
Nesse cenário, empresas e organizações públicas também estão preocupadas com a sua reputação e a mensagem que transmitem ao mundo. Um episódio que alcançou grande notoriedade durante esta Copa do Mundo foi a criação e publicação de vídeo – que circulou nas mídias sociais e angariou a insatisfação pública por retratar assédio contra jornalista russa – que trouxe graves consequências, dentre elas a decisão da empresa por desligar o trabalhador envolvido no episódio. Em outros casos de vídeos publicados online, com torcedores, de diferentes países, filmando o assédio a mulheres, algumas menores de idade, os envolvidos identificados tiveram seus FAN ID (identificação necessária para entrar nos estádios) bloqueados e sem possibilidade de assistir mais jogos.
Clóvis de Barros Filho diz que a ética é uma prática de reflexão “em que a razão busca o melhor argumento no sentido de um aperfeiçoamento progressivo da convivência”[1]. A convivência tem mudado e a tecnologia possui papel fundamental no desenvolvimento dessa mudança.
A sociedade vem clamando por um pedido de transparência, respeito e igualdade!
Relatoras: Fernanda Teixeira Costa e Márcia G. da Cunha Serra
Revisores: Paulo de Oliveira Piedade Vidigal e Camilla do Vale Jimene
[1] http://www.institutocpfl.org.br/2013/04/04/etica-da-praxis-a-complexidade/
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